O médico Rodrigo Damasceno, que foi fotografado atendendo um bebê de dois anos com água na cintura, disse, nesta terça-feira (23), à Globo News, que ficou assustado com a repercussão do caso e que, para ele, esse tipo de atendimento é normal na cidade quando é atingida pela cheia do rio.
O caso ocorreu no último sábado (20), quando o município havia sido 90% atingido pelas água do rio Tarauacá, que estava com o nível de 11,05 metros. Nesta terça-feira (23), o rio segue apresentando sinais de vazante e está com a cota de 9,30 metros, pouco abaixo do nível de inundação, que é de 9,50 metros.
No dia em que a foto foi tirada, Damasceno tinha ido ao local de barco com uma equipe da clínica em que trabalha fazer atendimentos de saúde e havia acabado de atender uma senhora. Foi quando passou a canoa e a mãe do bebê o chamou dizendo que o filho precisava de atendimento, pois estava com pneumonia.
Bebê, que tem apenas dois anos, está com pneumonia, segundo o médico Rodrigo Damasceno — Foto: Lucas Melo/Arquivo pessoal
Damasceno disse ainda que a casa da família fica em um dos primeiro bairros atingidos pela enchente, na Rua Manoel Lorenço, no bairro da Praia, e que os pais da criança não saíram do local por medo de terem o imóvel invadido.
“Quando o rio transborda, as ruas viram rio também, a gente anda de canoa nas ruas só que para entrar nas casas é difícil, porque têm cercas e, quando alguém precisa, a gente desce da canoa. Apareceu essa mãe em um barco precisando de atendimento, eu já estava na água e fui fazendo o atendimento na criança com ajuda da colega enfermeira. Foi algo que, para nós, era o habitual, talvez o simbolismo da imagem ganhe uma proporção muito grande”, avalia.
O médico, que também é ex-prefeito da cidade, falou que além dele, outras pessoas e instituições estavam no momento fazendo esse tipo de atendimento para ajudar a população. O grupo também distribuía sopa e remédios.
“É importante destacar que não era só eu que estava fazendo esse gesto, várias pessoas e instituições ajudaram, nós estávamos fazendo distribuição de sopa no final da tarde e durante o dia ficava fazendo as consultas médicas. Os medicamentos contamos com ajuda de outros colegas médicos que tinham amostras grátis e com a doação de uma farmácia local que estava nos ajudando. Não adianta dar a receita, eles não têm como comprar naquela situação.”
Médico disse que além de atendimentos médicos as equipes ajudam com a distribuição de alimentos — Foto: Reprodução/Globo News
Ele falou ainda que além de as pessoas estarem precisando de atendimento médico, a situação de não poder sair de casa e não ter dinheiro para comprar o que comer também comove as equipes médicas.
“Depois dessa foto muitas pessoas e instituições nos procuraram para ajudar. Tanto as pessoas daqui como de fora. Tem uma foto em particular de uma família que no dia eles ainda não tinham se alimentado, isso já era 17 horas, e a sopa que demos foi a primeira refeição que eles estavam fazendo. Isso tanto pela dificuldade de estarem isolados, pela dificuldade financeira, porque eles não tinham dinheiro. A ausência do auxílio emergencial piorou ainda mais uma situação caótica que a gente está vivendo com essas alagações”, acrescentou.
Rodrigo Damasceno junto com outros parceiros distribuíram sopa ais atingidos pela cheia — Foto: Reprodução/Reprodução Globo News
Covid-19, cheia, dengue e doenças pós-cheia
O médico alerta para doenças que podem surgir no pós-cheia. A situação preocupa ainda mais os profissionais de saúde.
“Após a alagação, o quadro que estamos vivenciando agora é ainda pior, têm muitos casos de diarréia, problemas de pele, essa água irrita a pele em uma proporção gigantesca, até com a gente que está na assistência. Como a gente está em uma pandemia do coronavírus é algo que me preocupa muito.”
O profissional de saúde afirma que os casos de Covid-19 na cidade podem aumentar ainda mais após a cheia. Tarauacá tem, até essa segunda (22), 4.244 infectados pela Covid-19.
“Têm as famílias que não saíram de casa, geralmente tem uma casa que é mais alta, quando a casa não dá mais para ficar dentro, é comum encontrar casas onde tinham cinco famílias dentro, estavam sendo meio que um suporte para as famílias adjacentes. Então, o caso do coronavírus, que já estava meio saturado aqui no nosso estado, a tendência é ter um agravamento”, diz.
A dengue é outra preocupação na cidade que vive uma epidemia da doença. “A gente tem em torno de 40 mil habitantes e estamos com quase 200 casos de notificações diárias e temos entrado nesse cenário, então, se tem 200 notificados tem muito mais subnotificados. Quando a água baixar, fica muita água represada, então, tem esse problema da dengue, que vai piorar,” diz.
Entulhos e lixo são tirados de ruas de Tarauacá, no interior do Acre, após águas baixarem — Foto: Carlos Lima/Arquivo pessoal
Cenário desolador
Damasceno lamentou ainda os rastros que a cheia deixou no município, porque, segundo ele, as pessoas perderam o pouco que tinham.
“Um cenário desolador, quando a gente ia passando pela cidade e via as pessoas colocando para fora sofá, cama, porque as casas aqui já são altas, elas já são tipo palafitas (casas construídas altas por estarem em regiões alagadiças), mas só que a pessoas não esperavam que o rio ia subir tanto. Então, chegou um determinado ponto em que a pessoa não tinham mais como subir os móveis e muitas famílias acabaram perdendo tudo o que tinham, o pouco que tinham”, desabafou.
Segundo a Defesa Civil de Tarauacá, há 80 famílias desabrigadas e 35 desalojadas. Foram montados oito abrigos para atender os moradores que precisaram sair de casa. Pelo menos 7 mil famílias, o que representa em média 28 mil pessoas, estão atingidas pelas águas do rio. Nove bairros da cidade já foram afetados, além de parte da BR-364, que dá acesso à cidade.
Tarauacá está com 70% da área alagada com a enchente do rio que leva o mesmo nome — Foto: Gleydison Meireles/Arquivo pessoal
Impotência
Médico há 14 anos, o profissional revelou que o sentimento diante da situação foi de impotência por não conseguir ajudar mais e aliviar o sofrimento da população. Mesmo assim, ele falou que segue oferecendo o que pode, seja um atendimento médico, um remédio ou um prato de sopa.
“É um misto de sentimento, de esperança, porque estamos tentando ajudar, mas também de impotência, porque a força da água é muito grande. Estamos em uma encruzilhada, o pouco que fazemos não vai resolver todos os problemas, mas fazemos nossa parte. Teve uma pessoa hoje, quando fomos distribuir a sopa, que falou: ‘doutor, a gente quer que a água baixe’. Falei que não podia ajudar dessa forma, mas com um atendimento e sopa podia”, relembrou.
Rio Tarauacá ultrapassou os 11 metros e atinge nove bairros na cidade — Foto: Gleydison Meireles/Arquivo pessoal
Calamidade
O governo do Acre decretou calamidade pública nessa segunda (22) em dez cidades do estado afetadas pelas enchentes. O decreto foi publicado em uma edição extra do Diário Oficial do Acre (DOE) e é válido por 90 dias.
No mesmo dia, o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) reconheceu, em edição extra do Diário Oficial da União (DOU), estado de calamidade pública em 10 cidades do Acre atingidas por inundações causadas pela cheia dos rios no estado.
Os municípios de Rio Branco, Sena Madureira, Santa Rosa do Purus, Feijó, Tarauacá, Jordão, Cruzeiro do Sul, Porto Walter, Mâncio Lima e Rodrigues Alves enfrentam dificuldades com parte da população desabrigada (encaminhada para abrigos) e desalojada (levada para casa de parentes).
Situação de emergência
O governador do Acre, Gladson Cameli, decretou na terça (16) situação de emergência devido à cheia dos rios que desabriga centenas de família no estado do Acre. As cidades de Rio Branco, Sena Madureira, Santa Rosa do Purus, Feijó, Tarauacá, Jordão, Cruzeiro do Sul, Porto Walter, Mâncio Lima e Rodrigues Alves foram citadas no decreto.
Na quinta (18), o governo federal reconheceu a situação de emergência na capital acreana e na cidade de Tarauacá, no interior do estado. A portaria de reconhecimento foi publicada no Diário Oficial da União (DOU), assinada pelo secretário Nacional de Proteção e Defesa Civil, Alexandre Lucas Alves.
No caso de Rio Branco, a declaração de situação de emergência foi feita no último dia 9 pela prefeitura após uma enxurrada que deixou 40 bairros atingidos pelas águas de igarapés que transbordaram.
Em Tarauacá, a situação de emergência é devido à enchente do rio que leva o mesmo nome da cidade.
Fonte: G1